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Psicanálise em Foco - Alicia Lisondo

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Por Alicia Lisondo
Analista didata pela SBPSP e SBPCamp


Psicanálise em Foco - Entrevista com Alicia Beatriz Dorado de Lisondo, realizada por Regina Lúcia Vicente Pereira

 

Entrevista publicada no boletim do GEP em 01/05/2022


Alicia Beatriz Dorado de Lisondo - Analista Didata e Docente de la SBPCamp e da SBPSP. Filiada à International Psychoanalytic Association
Co-fundadora do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas
Analista de Crianças, Adolescentes pela International Psychoanalytic Association
Vice Presidenta de ALOBB Associação Latino-Americana de Observação de Bebês Método Esther Bick.

Participante do GPPA Protocolo Prisma

Coordenadora do Projeto S.O.S Brasil com respaldo da FEBRAPSI, FEPAL e IPA

 

1 – Alicia, a senhora poderia nos contar como foi seu trajeto até se tornar psicanalista?

Sempre quis estudar psicologia e ser psicanalista. Na Argentina tinha programas na TV com renomados psicanalistas que eu admirava.

 Trabalhei como docente e aprendi que não conseguiria as transformações que eu idealizava com as ferramentas pedagógicas que eu tinha naquela oportunidade. Com 17 anos comecei a trabalhar numa escola como professora auxiliar.

O gabinete de Psicologia da escola em nada me ajudava. Eu cursava já o primeiro ano de Psicologia, quando fui nomeada como Orientadora Educacional, pela minha qualificação como Professora de Psicologia. Eu só sabia o que não queria fazer. Era uma desorientada orientadora educacional.  Não pretendia aplicar só testes num gabinete e rotular uma criança.

Estava muito ciente da responsabilidade que tinha. Desse diagnóstico dependia o destino da criança, se a decisão fosse o encaminhamento a uma “Escola Especial” que não era tão especial.

Prontamente fui trabalhar com os adolescentes na escolaridade secundaria e não mais na primaria. Os adolescentes podiam marcar uma hora para conversar comigo. O sigilo profissional era regra de ouro.  A partir dessa escuta eu trabalhei em 3 eixos: Drogadição, Vida sexual genital e Orientação Vocacional.

 

O Eixo Drogadição tinha o suporte da equipe de Toxicologia do Hospital Borda. Adolescentes e jovens reabilitados narravam suas experiências e logo o publico – alunos, pais, familiares ex-alunos – era dividido em grupos operativos. Os jovens reabilitados e profissionais do Hospital também participavam dos grupos e os preceptores as vezes colegas da faculdade, coordenavam essa atividade.

Todos os Eixos seguiam este dispositivo de trabalho.

O início da Vida Sexual tinha como suporte profissionais da Psiquiatria e Ginecologia do Hospital de Lanus, uma referência pioneira em Saúde Mental.

O Eixo de Orientação Vocacional tinha o suporte da Faculdade de Psicologia da UBA. Um Psicólogo com formação analítica falava sobre a Vocação como uma questão de Identidade, do SER.

Em cada encontro os estudantes convidavam um profissional destacado em diferentes áreas e eles formulavam as questões que tinham elaborado previamente.

Fazia parte da programação: visitar os locais de trabalho dos profissionais convidados, comentar com o grupo “Um relatório da observação desse lugar”

com próprias impressões, a conversa com os diferentes funcionários, as dúvidas e as questões em aberto. Também indagavam que competências da personalidade seriam necessárias para o melhor exercício da profissão investigada.

 Eu tinha nessa escola um laboratório privado, singular, onde eu tentava aplicar o que aprendia na faculdade. Também muitos dos professores dessa escola aceitaram o desafio de atender, dentro do possível, essa programação. Muitos colegas da faculdade também participaram e faziam o estagio em Educação.

  

 2 – O que mais te entusiasma na profissão de psicanalista?

Talvez o poder do encontro, da relação analítica, o poder da palavra, da linguagem não verbal nos bebês, em todo paciente... Estar sempre ante desafios, surpresas, novidades. Cada paciente convoca a um mergulho peculiar no meu SER; oportunidade de lapidar minha própria identidade em reanálises, encontros, discussões. 

É um privilégio ser psicanalista!!!


3 – Sua preocupação com o social sempre esteve presente em seu trabalho como psicanalista?

Essa escola era numa cidade de imigrantes na província de Buenos Aires, chamada Lánus. Os pais dos alunos eram operários, trabalhadores da construção civil, empregados do comércio e muito politizados. A educação era um caminho para a sonhada mudança social.

Sempre achei que a educação devia zelar pela formação dos alunos e não só dar informação. Ainda não tinha chegado a Bion. Mas já tinha Paulo Freire em mãos.

O clima na faculdade em Buenos Aires, com meus pais, meu vô catalão, era muito politizado. O social era uma preocupação em pauta.

Eu também tinha estudado em escolas públicas e tinha a vivência com colegas de uma classe social muito vulnerável.  

   

4 – A atuação junto as pessoas que viveram a tragédia de Brumadinho foi a primeira que a senhora conseguiu mobilizar os psicanalistas para irem além “muro”, saindo do espaço da sala de análise? Como surgiu essa ideia?

Em Buenos Aires, meu primeiro trabalho concursado como Psicóloga foi no Sindicato Gráfico. Com a apresentação desse trabalho na IPA (International Psychoanalytic Association), ganhamos o Prêmio José Bleger.

Esses operários eram alfabetizados, politizados e muito bem informados.

Em março de 1976, os militares ocuparam a Direção de todos os sindicatos.

Um clima de terror. Eu já tinha participado de várias manifestações em defesa da Escola Pública, saindo do Congresso até a Casa Rosada, pela Avenida de Maio. Já estava em análise, meu marido como engenheiro tinha possibilidades de trabalho no Brasil; e eu chorando deixei tudo para iniciar uma nova vida.

Em São Paulo eu tinha trabalhado com dois avós que tinham saído de Buenos Aires com os netos, uma mala e certos brinquedos. Os pais dessas crianças estavam desaparecidos. Esses avós queriam salvar os netos.  Aprendi o terrível que era ter que viver um luto sem o cadáver para velar. A eterna dúvida enaltecida pela negação. E se estão vivos? Vamos esgotar todos os recursos!!! Como nos despedir, como elaborar um luto? Onde está o corpo?

Eu atendi essas crianças pequenas com as avós na sala. A pedido delas, que sabiam de nosso métier, não podia ter registros escritos, fazer supervisão, anotar o nome verdadeiro na agenda. Elas sabiam da operação Condor (Aliança feita entre as ditaduras sul-americanas, com apoio dos Estados Unidos, em meados da década de 1970, para reprimir as ações de opositores). Por sorte eu estava em análise com Lygia Alcantara de Amaral. 

Quando eu viajei a Buenos Aires, me encontrei com familiares que me deram fotos dos pais com as crianças. Eu coloquei essas fotos nas caixas. Mas precisei retirá-la pelo terror destes avós. O retrato provocava uma convulsão emocional ao se encontrarem com a força da imagem, da história.

Em Brumadinho os corpos estavam também desaparecidos, por um crime ambiental. Como não ajudar a elaborar estas terríveis perdas em bebês, crianças e adolescentes com as ferramentas que a Psicanálise nos oferece, após 2 ou 3 meses de procura dos corpos?  Como não compartilhar nossa experiência com Adoção e Parentalidade, quando nós coordenamos um Grupo de Estudo na SBPSP com Gina Khafif Levinson há 17 anos?

 

5 – Qual a evolução que a senhora tem visto nos conceitos psicanalíticos nesta questão de um olhar mais para o social?

Creio que o social está presente já em Freud com enorme preocupação e responsabilidade ética.

A cultura sempre nos atravessa. E como dizia Janine Puget quando o analista tenta fechar a porta a essa realidade, o social entra pela janela.

Na psicanálise “tradicional” a questão é a exigência para que o analista possa zelar pela disciplina analítica e manter a abstinência. Uma postura flexível que emane do pensamento e não de atuações racionalizadas com elasticidade ou apertura é fundamental.

Como seria possível deixar o social de lado na recente pandemia por Covid 19, que transformou o trabalho analítico num laboratório mundial?

Claro que cada paciente, cada família, viveu esta pandemia à sua paisagem mental singular. 

É responsabilidade da pessoa do analista construir o objeto analítico no encontro entre a singularidade do paciente e a sua.

Minha postura hoje é – com cuidado e esforço, para não desvirtuar às raízes epistemológicas da psicanálise – propormos um diálogo interdisciplinar com humildade, cientes dos desafios e de nossa ignorância.

 Sempre o trabalho psicanalítico é social. O paciente levará as transformações conquistadas no ser, SER, à sua família, ao trabalho, à escola, aos grupos de pertinência.

Nas intervenções na comunidade é vital afinar nossas ferramentas de trabalho, como o pianista afina seu piano. O trabalho com a população pobre, em vulnerabilidade social, não pode ser uma pobre psicanálise, ao dizer de Lazslo Antônio Ávila.

 

6 – A criança ainda é seu foco quando pensa em um projeto social? Quando ocorrem essas tragédias?

Meu foco é a relação Bebê-Mãe-Família. Iniciei trabalhando no Hospital de Lánus em Buenos Aires com Raquel Soifer na Gravidez, Parto, Puerpério; nome de seu livro, quando ainda era estudante de Psicologia.

Hoje sinto muito mais a obrigação de levar as conquistas da Psicanálise, à sociedade. Com a Escola Francesa aprendemos que é possível observar com 4 meses de vida de um bebê, se há uma tendência para um desenvolvimento dentro do espectro dos transtornos autistas. Com intervenções oportunas nesse vínculo primordial, na primeiríssima infância, é possível transformar esses vínculos para possibilitar o desenvolvimento desse ser.

Aquilo que aprendemos precisa chegar à comunidade. Este é o terreno fértil da prevenção.

A ferida na alma pode iniciar um processo de cicatrização. O trauma não necessariamente precisa estigmatizar o destino, como quando fica congelado, sem representação, indizível. O cadáver não precisa ficar eternamente insepulto; pode vir a ser enterrado e o luto minimamente elaborado. A vida pode encontrar renovados sentidos, mesmo com os trágicos acontecimentos sofridos.  

   

7 – Como surgiu o S.O.S Brasil? A quem esse projeto se destina?

Com Hilda Botero, Presidente da ALOBB (Associação Latino-Americana de Observação de Bebês, Método Esther Bick), eu tinha trabalhado como Vice-Presidente durante 2020, discutindo como seguir observações já iniciadas; como colaborar e criar alternativas num Hospital no Chile e outros países da América Latina, aonde todos os bebês em UTI eram separados das mães. Nós partimos do princípio de que a mãe não é uma visita na UTI neonatal, a mãe é parte do bebê e forma com ele uma unidade. Claro que com a pandemia nem sempre isto era possível, com mães contaminadas pelo vírus; mas foi possível que essas mães em isolamento, recebessem fotos dos bebês, notícias; que num caderno colassem recortes e fotos sobre a pandemia, gravassem mensagens sobre como se sentiam, para que logo fosse possível transcrevê-los e montar um álbum. Nele a pandemia seria o primeiro capítulo de uma história a ser narrada, vista, revivida. A pretensão era vitalizar o vínculo psíquico dos pais com o filho internado e permitir que o trauma não ficasse congelado, mudo para toda a família e ter a chance de circular com o poder da palavra. Quando a mãe era analfabeta, ela gravava o que sentia e alguém logo o escrevia nesse caderno-álbum.

Num domingo de janeiro de 2021 eu tinha acabado de participar de um Congresso on-line com autoridades em autismo como Haag, Goolse, Laznik entre outros, quando escuto no noticiário que uma autoridade de Manaus pretendia separar os bebês que precisavam oxigênio das mães, para que fossem transladados a outros estados para então receberem oxigênio.

Rapidamente instituições nacionais e internacionais manifestaram a indignação, denunciaram a loucura genocida e essa medida foi cancelada.

Na minha carta de repudio nessa noite, escrevi para ALOBB falando sobre a carência de oxigênio psíquico. Minha revolta e indignação inspiraram a ação pensada.

Assim nasceu O Projeto S.O.S. Manaus que de início tinha como foco os bebês e as famílias de Manaus, assim como os profissionais da saúde.

Um grupo formado com colegas e amigos da FEBRAPSI abraçou o projeto com muito entusiasmo, responsabilidade e competência; disponibilidade que muito agradeço. Alcançamos uma dimensão bem maior que aquela do início, pelo trabalho criativo, persistente e sério do grupo.

Prontamente percebemos que as crianças e os adolescentes também estavam em sofrimento psíquico.

Hoje o Projeto S.O.S. Brasil atende 5 eixos:

EIXO I - Bebês e Família

EIXO II - Crianças

EIXO III - Adolescentes

EIXO IV - Adultos (Pais, cuidadores, profissionais da saúde, da educação e do poder judiciário) 

EIXO V - Instituições.

Todos os analistas do projeto pertencem a FEBRAPSI. Os que atendem pacientes precisam frequentar um ATELIÊ específico sobre o EIXO escolhido.

Para atender no EIXO I e II um requisito é ter tido experiência em Observação de Bebês Método Esther Bick. 

Para zelar pela qualidade dos atendimentos, para esculpir nossa sempre inacabada identidade analítica, para aprofundar os alicerces epistemológicos de um atendimento psicanalítico emergencial, convidamos um analista com experiência reconhecida para abrir questões, numa reunião cientifica mensal. Yolanda Gampel, Gianna Williams, Suzanne Maiello, Monica Cardenal, Fernando Gomez, Marcelo Viñar foram nossos mestres em 2020 e 2021.

Neste momento, abril de 2022, há 45 analistas nos atendimentos e ao todo 60 profissionais fazendo parte do Projeto SOS Brasil, sendo um grupo gestor, coordenadores e um grupo de comunicação e divulgação

 

8 – A senhora acredita ser importante que os psicanalistas participem de trabalhos sociais? Por quê?

Penso que é muito importante que o analista possa ter uma experiência no trabalho social.

A realidade do trabalho social nos enriquece humanamente, muito além daquilo que nos oferece como desafio para crescer profissionalmente.

O trabalho social nos permite entrar em contato com a realidade da miséria do Brasil profundo, dos preconceitos raciais, da desigualdade atroz na organização social brasileira, com a força transgeracional da maldita herança escravagista nesta terra. Também permite surpreender-nos com a força de EROS, com o poder do inédito encontro analítico, da escuta, da palavra, da intuição, da fé no método, da esperança nas transformações possíveis.

Certos depoimentos espontâneos dos pacientes estão no nosso site: https://www.sosbrasilpsicanalise.com.br/

 

 

9 – Tem encontrado dificuldades em ter apoio dos colegas psicanalistas nesses projetos sociais? Em que esbarra ainda o fortalecimento dessas ações?

Temos tido enorme apoio da FEBRAPSI, FEPAL, IPA, de certas Sociedades como a SBPSP, Minas Gerais, Grupos de Estudo como o GEP de São José do Rio Preto, Florianópolis. Nosso agradecimento a todas essas instituições.

Penso que o trabalho social ainda é desvalorizado, como se fosse a prima pobre da verdadeira psicanálise.

Em outros países a formação do psicólogo e do candidato nos Institutos, já exige trabalho social. Nos serviços hospitalares muitos psicanalistas com sólida formação, estão na liderança dessas equipes.

Aprendi muito com Raquel Soifer, Susana Ferrer, Elizabeth Garma, Arminda Aberastury, que supervisionavam o atendimento de pacientes atendidos no âmbito hospitalar. Num primeiro momento eu só podia observar as reuniões clinicas. Num segundo momento podia observar e registrar um grupo de pais reunidos durante uma hora enquanto os filhos também eram atendidos individualmente.

Os analistas pioneiros em Buenos Aires, imigrantes da guerra, entraram com o pensamento psicanalítico nas universidades, nos serviços de saúde, na educação. A psicanálise, na década de 70, já tinha penetrado na cultura.

Ao dizer de Mafalda: Se você estava num café na Vila Freud, você teria saído de uma poltrona ou de um divã.

E a classe média em toda sua amplitude também tinha recebido informações claras sobre a psicanálise, através de programas televisivos, de rádio, artigos em jornais e revistas. 

Ter uma experiência no trabalho social era um item muito valorizado no currículo.  Claro que o governo militar percebeu o poder revolucionário da psicanálise e acabou com tudo o que se tinha construído. Muitos analistas precisaram sair do país para proteger suas vidas e o Brasil foi um dos destinos, como na minha história.

Eu precisei deixar o cargo de psicóloga concursada no Serviço de Saúde Mental no Sindicato Gráfico Argentino, quando imigrei em 1976. 

 

10 – Do seu ponto de vista, quais ações os psicanalistas precisariam ter para que se fortalecesse o S.O.S Brasil.

Penso que todos os membros do Projeto precisam divulgar o serviço e motivar os colegas a participarem. As reuniões científicas são oportunidades para que os analistas que ainda não participam de projetos sociais, possam vislumbrar tanto as limitações quanto as possibilidades de um Serviço emergencial. 

Os institutos precisariam contemplar tanto a transmissão das ferramentas para o trabalho social, quanto incluir a experiência vivida, para que seja discutida em seminários específicos nessa área.

Seria importante promover mudanças na cultura institucional para que o trabalho social não seja desvirtuado, confundido com assistencialismo, orientação, aconselhamento, pedagogia, doutrinação política ou ideológica e outros pecados epistemológicos.

Com a esperança de que este depoimento seja inspirador para os colegas participarem do Projeto S.O.S. Brasil. Serão muito bem-vindos porquê num serviço emergencial não podemos ter lista de espera!!

Muito agradecida pela valiosa oportunidade,


alicia.beatriz.lisondo@gmail.com



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