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Narrativa e saúde na infância

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Por DRA VANESSA FIGUEIREDO CORRÊA
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Membro do Grupo de Estudos de Psicanálise de São José do Rio Preto e Região

Narrativa e saúde na infância

 

“a narração não formaria o clima propício e a condição mais favorável

de muitas curas, e mesmo se não seriam todas as doenças curáveis

se apenas se deixassem flutuar para bem longe

- Até a foz- na correnteza da narração”?

(Benjamin, W. In “Conto e cura”)

 

Neste outubro de 2022, as notícias sobre a infância são alarmantes: aumento da notificação da violência doméstica[1] contra mulheres e crianças; estimativas de que entre 2019 e 2021, o número de crianças de 6 e 7 anos que não sabem ler cresceu em 66,3%[2]; aumento de diagnósticos de autismo[3] (dados que necessitam de mais investigação e correlação às causas) são apenas alguns dos exemplos de estatísticas que nos fazem temer pela infância e pelo futuro do país. Portanto, escrever um ensaio em comemoração ao Dia das Crianças é um grande desafio e responsabilidade.

Enquanto a população se agride e se divide entre dois candidatos que disputam o segundo turno das eleições presidenciais, as crianças vivem na pele os efeitos pós-traumáticos da pandemia que deixou mais de 600 mil mortos, produzindo um número expressivo de órfãos.

Mas é preciso encontrar meios para acalentar os pequenos, pegá-los no colo e oferecer companhia. Não praticando a desmentida, e sim dizendo de alguma maneira que “estamos aqui, também ficamos traumatizados, contudo nossas mentes já mais amadurecidas terão condições de oferecer um lugar para que vocês possam se desenvolver”.

Entre as pessoas que se dedicam para garantir o bem-estar e o desenvolvimento na infância, ressaltamos os professores e profissionais de educação, inseridos na base da formação do sujeito - a despeito da vergonhosa desvalorização financeira a que são submetidos; também destacamos todos os que lutam pela preservação dos direitos infantis; os profissionais de saúde e assistência social que cuidam, denunciam e notificam os abusos contra as crianças; além daqueles que trabalham voluntariamente para garantir a distribuição de alimentos para as famílias com fome, até aqueles que doam seu tempo organizando-se em movimentos de atendimento gratuito de saúde mental como o SOS Brasil. Avançando na defesa da saúde psíquica infantil, precisamos reconhecer também a importância dos artistas, e ressaltar o valor das artes - literatura, música, teatro, cinema, artes plásticas e todas as demais formas de expressão, que oferecem à infância espaços de contingência e cura.

Diante do reconhecimento da força de trabalho de todos esses agentes, torna-se possível comemorar o Dia das Crianças propondo uma tarefa esperançosa: vamos convidar cada adulto que nos rodeia para cuidar das crianças próximas e distantes: seja através de ações como doação de roupas, brinquedos e alimentos, seja ajudando instituições ou resgatando a possibilidade de sonhar através do estímulo à arte.

O direito à literatura (aqui literatura designada de maneira ampla, como direito à fabulação e à narrativa) compõe também a cesta básica de direitos que fundamentam a saúde humana, como prova a antropóloga Michèle Petit no seu livro “A arte de ler - ou como resistir às adversidades”, em que demonstra o poder regenerador da leitura em espaços de crise como comunidades de refugiados, países em guerra, locais vitimados por extrema violência urbana, ou assolados por graves crises econômicas.

Em tempos virtuais, talvez o objeto livro se torne obsoleto, ou talvez o oposto: ainda mais atraente por sua concretude que transmite a ideia de continuidade - objeto transicional, que permanece resistindo à destrutividade instalada no ambiente e nas mentes pós-pandêmicas.

O livro, ponte que conecta as mãos de um adulto com a criança, pode ser lido em voz alta, com a intenção de emprestar ritmo e afeto às palavras, evocando o efeito das canções de ninar, sobre as quais se diz: “seu ritmo supõe um retorno, uma repetição, uma espécie de circularidade, capaz de se opor às tendências de separação e de dispersão que ameaçam o bebê” (Petit, 2010).

Há autores que associam o acesso à narrativa ao reestabelecimento da saúde. Walter Benjamin em “conto e cura” diz: “A criança está doente. A mãe a leva para a cama e se senta ao lado. E então começa a lhe contar histórias.” (Benjamin). A cura se dá quando é possível o acesso de elementos simbólicos que permitirão à criança trabalhar construtivamente com suas próprias fantasias inconscientes, tão perturbadoras quando não encontram espaço para elaboração.

As histórias oferecem novas combinações de soluções para problemas e diferentes construções de pensamento e por isso dão abertura ao sonho e o desprendimento momentâneo de aspectos duros e insolúveis da realidade.

A intermediação pelo adulto que dá, lê ou empresta o livro faz a criança se sentir acompanhada; e a diversidade de rearranjos da realidade, presente no conteúdo das narrativas, ampliam as possibilidades associativas e enriquecem o mundo interno do leitor/ouvinte, fortalecendo sua capacidade para lidar com as próprias demandas.

As histórias oferecem novas combinações de soluções para problemas e diferentes modelos de construção de pensamento e por isso abrem lugar para o sonho: “Oral ou escrita, a literatura é uma oferta de espaço. As palavras não cansam de revelar paisagens, passagens... ainda mais para quem não dispõe de nenhum lugar, nenhum território pessoal, nenhuma margem de manobra” como são os que vivenciaram experiências traumáticas.

 

 

Vanessa Figueiredo Corrêa, psiquiatra e psicanalista associada à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do GEP Rio Preto e Região e co-host no podcast “Lá fora- coisas do mundo atual pelo olhar da psicanálise”.

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