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Lutos e transitoriedade

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Por DRA. ETHEL MARIA FERREIRA PENNA
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Membro do Grupo de Estudos de Psicanálise de São José do Rio Preto e Região

Lutos e transitoriedade


Sobre o que há de transitório e permanente, sobre a onda que quebra e logo se desfaz, mas que em seguida se refaz, não sendo mais a mesma, ainda é onda.

Sobre o dia que amanhece, se desenrola, faça chuva ou faça sol, ele passa. Anoitece e vem outro dia. Um dia novinho em folha, outras histórias. Um novo dia, mas ainda um dia.

Sobre nascer, crescer e morrer. Crianças e seus brinquedos, a vida que pulsa na alegria do viver. Vem a força da juventude, da idade madura. A força que nos leva ao desenvolvimento e mais vida e logo, a doença, as dores. O choro. Também morremos. A cada dia nosso tempo de vida é mais curto. E assim como a vida nos espreita, nos espreita também a morte sorrateira. Nunca sabemos exatamente onde ela se esconde, sabemos que está lá nos acompanhando. Esse é o ciclo da vida. 

S. Freud em seu texto: “Sobre a Transitoriedade’’- 1916-1915, diz que ‘o valor da transitoriedade é o valor da escassez do tempo.’’

Usufruímos ou vivemos algo prazeroso ou desprazeroso delimitados por tempo e espaço. Aquele momento é único.

E o que nos permite vivenciar seja o que for, se refere à capacidade de fazer lutos, lutos diários. Pelo nosso dia que se foi, pelo ano que se finda, pela vida que passa, por nossos entes queridos que se foram. 

Ano difícil esse nosso último.

 Além da pandemia do Cov19, que nos afastou do contato com amigos e família, o ano de 2020/2021 também transformou o mundo que conhecíamos em algo novo e estranho. 

Enlutados, percorremos o caminho de lidar com nossa libido até que seja possível restaurar dentro de nós mesmos aqueles a quem amamos e consideramos para então seguir em frente com vitalidade e esperança. Processo doloroso e árduo. 

Em “Luto e Melancolia” de 1917/1915, S. Freud nos diz q quando o teste de realidade revela que o objeto amado não mais existe, exigindo que a libido seja retirada de suas ligações com ‘ele,’ ocorre naturalmente uma resistência a isso, porém, quando há respeito à realidade, o desligamento da libido vai sendo executado. Quando o processo de luto se conclui, diz S. Freud, o ego, a libido, fica novamente livre para reinvestimento em novos objetos. 

A transitoriedade da vida nos permite apropriarmos das relações com a gente mesmo e com o mundo, usufruindo a experiencia de trânsito entre os dois conhecimentos – envolve lidar com perdas e lutos, dando relevo a questões importantes como a continuidade e a descontinuidade humanas, da beleza e de sua fugacidade e finalmente do que se adquire nesse processo de aquisição/incorporação de novas experiencias que essa mesma transitoriedade/fugacidade nos possibilita.

O mundo da psicanálise é aquele que cada um percebe e do qual possui ou não representações internas, o que fornece ao aparelho psíquico uma individualidade e uma alteridade no mundo, com as quais vamos lidando com nossas dores e afetos e fazendo nossos lutos.

Se o homem, como individuo, se faz objeto cognoscível através da psicanálise, ou seja, da experiencia de si, acredito ser esse processo na e além da presença do ‘outro’, um processo de luto. Luto por aquilo que você achava que fosse, mas não é. Luto das ilusões e da conquista da alteridade e individuação. Luto pelo mundo que conhecíamos e no qual vivíamos e que já não é exatamente como antes. 

Segue que essa reformulação constante nos permite estar no mundo, sempre um pouco diferentes do que estávamos anteriormente.

Quando o psiquismo segue relativamente bem em seu funcionamento, nos sentimos capazes dos pequenos lutos diários e dos grandes, eventualmente. Sofremos nossa dor, seja da perda de um ente querido, seja do término de um trabalho que nos ocupou muito, de uma flor, de uma estação do ano ou de um mundo velho que se faz novo.

Seguimos para um novo ano, novos desafios, novas alegrias e novas tristezas. Seguimos humanos. 


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