Eu não tenho onde morar, é por isso que eu moro na areia | Grupo de Estudos de Psicanálise | Gep Rio Preto

Textos

Eu não tenho onde morar, é por isso que eu moro na areia

Postagem:

...
Por DR. LUCIANO MARCONDES GODOY
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Membro do Grupo de Estudos de Psicanálise de São José do Rio Preto e Região

Foi esta canção de Dorival Caymmi que veio de pronto, quando peguei este papel e esta caneta. Peguei-os, porque ando muito insatisfeito. Aliás, gosto muito das minhas insatisfações. Já renderam um livro e um saco de escritos, estes não publicados. Claro que hoje, em plena quarentena, imposta, outro não seria o tema: circulação proibida por lei e pela realidade aceita, dada como tal. Fatos não se discutem. Será? Eu tenho sempre tomado os fatos como provocações, porque entendo, como propõem os fenomenólogos, que a realidade não nos é dada como tal. “Pílulas! Ora, as pílulas! Engula as pílulas!” Má-criação? Rebeldia? Ativismo? E, credo-cruz, lá vêm os “ismos” e os “istas”, lacradores, coisificadores, tão a gosto do momento em que vivemos. Não sou um rebelde. Mas certamente não sou da linha do “bom-mocismo”, até porque tenho mais de oitenta anos.


Moro na areia, metaforicamente falando. Por enquanto. Não sei meu dia de amanhã. Por que falo assim? Porque a areia me vem associada imediatamente com o significado movediço. Areia movediça. E assim é que entendo o mundo, não de maneira fixada, mas tão dinâmica que nunca conseguimos apreender o que é, pois num átimo de segundo já não é mais.


Fico arrepiado com as propostas taxativas, hoje muito em moda, com a denominação “lacração”. O nome diz tudo: a antítese de como entendo o mundo. Pelo mesmo motivo, não abraço a difundida postura psicanalítica que entende as diferentes formas de produção mental e consequente apreensão da realidade como fuga da realidade ou mesmo adulteração da realidade. E neste momento, quero lembrar como os estudiosos do fenômeno mental descrevem a nossa percepção. Dirão que aquilo, os estímulos, que recebemos do mundo, via nosso aparelho sensorial, mais aquilo que recebemos de nosso mundo interior, numa complexa e intensa síntese, é projetado diante de nós como o objeto de nossa consciência. A percepção do mundo é de dentro para fora. O mundo não nos é dado como tal. A realidade que percebemos é uma síntese perceptiva. Não percebemos errado. Não falseamos a realidade. Isso posto, e nisso acreditando, a pluralidade das formas que estamos assistindo diante do coronavírus é um verdadeiro circo de variedades. É tudo isso que assistimos. A crise coronavírus é um conjunto incomensurável de diferentes formas de percepção. Percepções científicas (muitíssimo variadas, até antagônicas), filosóficas, poéticas, religiosas, ambientalistas, políticas (com seus infinitos desejos e matizes) etc. E a do bom mocismo: não me comprometam, sou neutro, sou um observador neutro, meu olhar é o científico, é o real, é a realidade. Vejo esta postura alinhada com a ingênua percepção, já há muito superada, que admite a realidade dada como tal. Estou preso, mas movediço. Trago dentro de mim muitas versões sobre esta crise, por isso sou um preso movediço.


Textos semelhantes por tag

Compartilhe com seus amigos e família

Textos Recentes