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É através da ética que o indivíduo se transforma numa pessoa socialmente responsável pelos seus atos, por meio de uma reflexão crítica e disciplinada sobre o comportamento humano, interpretando, investigando e encontrando caminhos. Como diz Altamirando Matos de Andrade no seu artigo “Ética e psicanálise”, o ser humano ao longo dos tempos, apresentou como aspecto intrínseco, a necessidade de se expressar através da palavra, falada ou escrita, e ser ouvido.
A genialidade inicial de Freud consistiu em perceber esta característica humana dando ouvidos às queixas de suas pacientes histéricas e tentando compreender o significado oculto dos sintomas. Escutar e buscar compreender o paciente para ajudá-lo a ser ele mesmo, serviu de base para estabelecer uma ética para a Psicanálise. Freud em Análise terminável e interminável ( 1937/1974) diz que o trabalho analítico está fundado sobre o amor e o reconhecimento da verdade e que, o amor à verdade precisa estar associado à consideração pelo outro.
Winnicott reforça a importância do outro, da mãe inicialmente, na constituição do Eu. Ele sustenta a ideia de que o bebê ao olhar o rosto da mãe, vê a si mesmo. Nas relações humanas íntimas nos vemos, ou seja, encontramos a nossa "verdade" no rosto dos outros. Não é possível amar sem antes olhar, encarar ou escutar o outro. Sem a escuta não acessamos nem a alteridade e nem a realidade. Trata-se então de abrir os ouvidos, ao que a Vida ou o Real diz ao corpo, ao coração e ao espírito de todo ser humano. Bion (1967), nos propõe um modelo para apreensão da realidade psíquica do paciente que é o estado de sem memória, sem desejo e sem a ânsia de compreensão. Modelo que permite o material do paciente emergir sem intromissão do analista e suas expectativas. Esta postura preconizada por Bion nos dá uma importante ideia sobre o papel ético do analista em relação ao seu paciente.
É preciso investigar a realidade psíquica, mas não pode ser de qualquer maneira, isto é, faz-se necessário ter uma disciplina ancorada num estado de mente que possibilite esta investigação e numa postura ética de não intromissão e ou manipulação do material inconsciente que emerge. São diversos os aspectos éticos que fazem parte do processo analítico.
Como psicanalistas temos a responsabilidade de, a partir, de nossas análises pessoais buscar mais condições de refletir, não atuar, transitar mais livremente no mundo das emoções e usar essa capacidade como nosso principal instrumento de trabalho. Arnaldo Chuster e Renato Trachtenberg em "A complexidade nas diferenças entre ética e moral: reflexos no trabalho analítico” dizem: Freud, investigando e descobrindo o inconsciente a partir do seu próprio, cria a psicanálise com seu potencial transformador/ revolucionário.
A revelação dos desejos inconscientes como formadores de ética inerente aos humanos, enraizada na mais caótica e profunda estrutura constitutiva do ser, que é o inconsciente, transgride os códigos estabelecidos e aponta para o grande paradoxo da existência humana ao assinalar que a ética é um exercício individual, a partir de leis ditadas pela consciência, que não representa uma ação qualquer, mas sim, uma ação relacionada a atitudes que provocam consequências nos outros, que o individuo tem responsabilidade, onde o pensamento se faz presente, diferente da referência moral, que são decorrentes de leis, regras ou códigos que mandam, determinam, ditam o que a sociedade deve fazer.
Como bem sabemos, o bem e o mal comportam incertezas e contradições internas. Portanto, " A ética da psicanálise é uma ética da investigação, segundo a qual a dúvida sempre deve poder abrir uma brecha na fortaleza das certezas imaginárias com as quais o narcisismo do eu se defende".(2014) A postura ética do psicanalista é usar a posição assimétrica com neutralidade, restringindo seu poder ao auxiliar o paciente a encontrar seus próprios recursos e alternativas. Acreditar que as escolhas são sempre do paciente é a premissa que nos dá convicção de que não sabemos o que é melhor para ele, e somente nosso narcisismo pode nos levar a pensar de outra forma.
A construção da identidade analítica se dá através de um vai e vem contínuo entre o que sentimos, somos e apreendemos. A partir dos diversos autores e figuras importantes que tomamos como referência, construímos e desconstruimos orientações bem como nossa história, criando assim, uma identidade calcada também em nossa experiência pessoal e clínica, o que nos coloca num longo processo de desenvolvimento e numa formação analítica interminável.
Fábio Hermann no seu excelente trabalho "Reflexões de menoridade: reflexões sobre a formação psicanalítica”, deixa claro como é fundamental a postura ética do analista didata na colaboração da formação do seu analisando e futuro psicanalista para que possa ser desenvolvida neste uma condição ética. Na solidão dos consultórios só contamos conosco mesmos e com nossa constelação de objetos internos para nos avaliar e conduzir.
Os códigos de ética formais não têm alcance direto, apesar de serem importantes como um alerta para os riscos de transgressões sempre presentes. Uma conduta ética precisa ser um imperativo interno, sentido como aceito pelo indivíduo, com toda carga de privação que possa trazer, mesmo que sua origem seja uma imposição externa: a necessidade de aceitarmos a alteridade e nos desiludirmos acerca de nossa onipotência. Não me refiro, portanto, a um conjunto de regras técnicas, mas ao compromisso com a verdade e a clara noção de que não temos o controle absoluto sobre nossa conduta, porque, em qualquer experiência da vida, funcionamos em um duplo registro, consciente e inconsciente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1- Andrade Jr., A. (2020) Ética e psicanálise in Rev. de Psi. da SPPA, Vol.XXVII, n.3
2- FREUD, S. (1937/1974) Análise Terminável e Interminável. in Obras Completas, Ed.Imago - FREUD, S. (1895/ 1974) Projeto. In Obras Completas, Ed. Imago
3- CHUSTER, A., SOARES ,G., TRACHTENBERG, R.,( 2014) A complexidade nas diferenças entre ética e moral: reflexos no trabalho analítico in W. Bion : A obra Complexa, Ed. Sulina, Porto Alegre
4- FURTADO, G. (2019) Entre o Catastrófico e o Criativo: a experiência emocional na vivência da Intimidade
5- Schaffa, S.( 2016) Comentários sobre o texto de Fabio Hermann de 1995, 2ª edição de Reflexões de menoridade: sobre a ética da formação psicanalítica -Fabio Hermann in Jornal de Psicanálise, vol. 49 (90), 107-128. 2016 ( 1ª edição 1975, 2ª 1995, 3ª 2016)