Vi, lendo. E certamente passou a ser a minha Clarice Lispector. Talvez, se ela ouvisse o que eu digo dela, muito surpresa, diria: “Eu não disse nada disso.” Feita essa ponderação, posso me sentir mais à vontade para apresentar essa que é a minha Clarice. Direi pouco e, ao término destas minhas impressões, farei algumas citações, para que aqueles que lerem essas considerações possam, como eu, assimilar as suas Clarices. Quando tive este privilégio, percebi que ela não falava sobre as coisas. Ela não se referia às coisas. Ela era a coisa. E a coisa, quando é, tal como os sonhos, é atemporal, é a-espacial e por isso é imortal. Clarice não morreu. Clarice está viva e não sabemos quantos anos tem. É como o Universo, atemporal e a-espacial. Portanto, o verbo usado no passado, linhas atrás, é apenas força de expressão.
Clarice diz que ter nascido fez muito mal à sua saúde. Eu diria que fez muito bem à nossa. E que ela não nasceu. Ela sempre existiu. Dizia também que a única prioridade para o ser humano é ser humano. Clarice não era esperta e dizia que, se Cristo tivesse sido esperto, não teria sido crucificado. Dizia que, depois que percebeu como as pessoas pensam, nunca mais acreditou em pensamentos. Recomendava que, já que as palavras não dão conta, em sua função expressiva, de traduzir o que se passa em nosso universo mental, que pelo menos não esmaguem as entrelinhas.
Contemporânea de Guimarães Rosa, conta com entusiasmo que, ao encontrá-lo certa vez numa reunião social, ouviu-o repetir de cor várias de suas reflexões e dizer que a lia, não como literatura, mas algo como uma lição de vida.
Clarice usava as palavras como os pintores usam as tintas e por isso gostava também de dizer que, em suas produções, recolhia-se a seu ateliê. Pintava com as palavras e gostava de inventá-las, certamente quando precisava de alguma nuance de palavra-tinta, para expressar o que sentia. Incansável na árdua tarefa de penetrar o infinito universo do sentido da vida, extenuava-se na procura do sentido do sentido, da coisa da coisa ad infinitum. Complexa e profunda nessa tarefa impossível, muitas vezes pintou textos de difícil acesso por via do raciocínio crítico. E, numa dessas vezes, quando escreveu Paixão segundo GH, foi inquirida por um crítico literário que, quase indignado, pedia-lhe explicações sobre o referido livro, pois havia lido esse trabalho várias vezes e nada havia entendido. Sua resposta foi: “No entanto, uma adolescente disse-me que este é seu livro de cabeceira”.
A Editora Rocco, certamente sabedora desse acontecimento, editou contos, crônicas e romances, selecionados com o nome Clarice na cabeceira. A propósito de explicações, dizia Clarice: “Explicar? Jamais desceria a tanto.”
Ainda com respeito a críticos, ouvia, certa vez, num simpósio, opiniões e classificações e outras coisas mais do mundo crítico-literário e comentou, com uma amiga escritora, que, se tivesse entendido uma linha sequer do que diziam, certamente não teria produzido uma linha sequer de sua obra.
Como Rainier Maria Riike, Clarice entendia que escrever era um ato de salvação e dizia que escrevia para se salvar. Selecionei duas citações de Clarice cujo conteúdo me parece fundamental para aqueles que pretendam mergulhar em seus escritos:
"Não ler o que escrevo como se fosse um leitor. A menos que esse leitor trabalhasse, ele também, nos solilóquios do escuro irracional.”
"Eu gosto tanto do que não entendo: quando leio uma coisa que não entendo, sinto uma vertigem doce e abismal.”